Roberto Bolaño e o cinema: imagem, tempo e montagem

Júlia Morena S. Costa

Universidade Federal da Bahia, Brasil

juliamorenacosta@gmail.com

Resumo: Este estudo visa analisar a obra narrativa de Roberto Bolaño (Chile 1953-Espanha 2003) na sua relação com o cinema. Para tal, são abordadas as aproximações temáticas e formais entre a obra do autor e a teoria cinematográfica. O cinema é tomado neste trabalho como um componente artístico e cultural que repercutiu na literatura quando escritores começaram a se interessar por esta arte. O estudo aborda as variadas referências ao imaginário cinematográfico constantes nos contos e romances de Roberto Bolaño e busca analisar alguns recursos formais do cinema apropriados pela literatura do autor, com ênfase no trabalho com o tempo, a imagem e a fragmentação de sua escrita, elementos tão caros à modernidade.

Palavras-chave: literatura contemporânea, cinema, Roberto Bolaño, imagem, tempo.

Roberto Bolaño and the cinema: image, time and montage

Abstract: This study aims to analyze Roberto Bolaño’s (Chile 1953-Spain 2003) narrative work in its relationship with cinema. With this objective, the thematic and formal approaches between his work and cinematographic theory are considered. Here cinema is understood as an artistic and cultural component which echoed in literature when writers began to be interested in this form of art. This study covers different references to the cinematic imagery that are constant on Roberto Bolaño’s short stories and novels and seeks to analyze some formal cinema resources appropriated by the author’s literature, which he emphasizes in his work with time, image and through the fragmentation of his writing, elements so important to modernity.

Keywords: Contemporary literature, cinema, Roberto Bolaño, image, time.

Mirian Gárate afirma que nas primeiras questões que surgiram para o cinema sobre sua relação com a literatura, “o desenvolvimento da linguagem fílmica orientou-se de imediato predominantemente em direção ao narrativo, o qual implicou um intenso aproveitamento de fontes literárias” e, em seguida, gerou reflexões sobre “os gêneros escritos que possuem, em hipótese, uma afinidade maior com a estética da lente” (197). Gárate assinala ainda uma questão mais global na qual “instaura-se uma reflexão sobre as possibilidades e impossibilidades ‘inerentes’ às linguagens visual e verbal, sobre suas respectivas propriedades específicas, limitações e potencialidades” (197), fazendo-se necessário refletir brevemente a respeito desses limites e encontros entre as duas artes. Nas primeiras aproximações do cinema com a literatura apresentam-se duas facetas inter-relacionadas: por um lado, durante as primeiras décadas, o cinema busca suas histórias no manancial literário, por razões práticas –há nele um repertório pronto, testado, conhecido por uma parte do público– exemplos notórios são Méliès, com o filme A maldição de Fausto (1903), baseado em romance de Goethe, e Viagem à lua (1902), claramente inspirado nas histórias fantásticas de Júlio Verne. Jacques Rancière aponta que o cinema se distanciou das artes plásticas e se aproximou da literatura pela capacidade desta de “antecipar um efeito, para melhor deslocá-lo ou contradizê-lo” (O destino 14), ou seja, dotando as imagens de narrativa. Além disso, são precisamente os escritores literários – embora não só eles – os responsáveis pelos primeiros tateios reflexivos sobre as características da nova arte e suas potencialidades. E, por outro lado, como uma das maiores questões propostas pela sétima arte e tocante à literatura, pode-se destacar a educação do olhar para o movimento e para o imagético. É a partir do cinema e no cinema que mais se elaborará a atenção sobre a cinética e as maneiras como essa acontece e, principalmente, como será representada. Desenvolveram-se, a partir deste, um estudo da imagem e do movimento e, consequentemente, experiências que passariam a educar o olhar para percebê-los. A literatura, dialogando com as outras artes, passou, também, a olhar para o objeto do cinema e a buscar, por meio de signos verbais, a elaboração do movimento e a iconicidade na sua produção. Entre alguns dos autores que passaram a compartilhar com o cinema novas formas de narrar está Roberto Bolaño, que também usou de temas e recursos próprios desse em sua escrita, produzindo um discurso que integra importantes referencialidades pictóricas e cinematográficas.

O autor, em entrevistas, declara sua cercania com o cinema, o que me parece interessante para propor a aproximação de alguns recursos dessa arte com sua produção literária, e confirma a influência da sétima arte na sua formação cultural. Em uma dessas entrevistas, atribui grande importância ao cinema e à literatura, dois discursos dos quais se valeu durante a infância e a juventude: “Seguramente porque era un niño, un adolescente muy sensible... entonces solo me quedaban el cine y los libros, y de niño me dediqué básicamente a ver mucho cine y a leer mucho” (Braithwaite 35). Em outras entrevistas, reafirma esse interesse pelo cinema, afirmando ser capaz de ver um mesmo filme mais de 30 vezes (Braithwaite 35). Na troca de cartas entre o autor e Waldo Rojas, reunidas no livro De Blanes a París, Bolaño reitera sua afeição pelas imagens em movimento e indica filmes para o poeta conterrâneo. Também em sua obra ficcional, deixa entrever esta presença do cinema em suas experiências estéticas e na formação de um imaginário compartilhado.

Ou seja, é patente a repercussão do cinema como discurso de cultura e um fenômeno de intertextualidade que se pôde perceber na literatura quando escritores começaram a se interessar por esta arte. Nos escritores latino-americanos, geralmente se pode encontrar uma enormidade de narrações recheadas de elementos populares e de referências cinematográficas: Manuel Puig, Juan Rulfo, García Márquez1, Julio Cortázar2, Horacio Quiroga, etc. Na geração de escritores latino-americanos nascidos nos anos 1950 e 1960, na qual se encontram, entre outros, Roberto Bolaño, Alberto Fuguet e Alan Pauls, pode-se perceber uma interiorização do meio cinematográfico em seus temas e recursos, como elemento fundamental de uma cultura popular que tais autores reconhecem como própria e essas afinidades com essa cultura criam relações complexas e autorreflexivas (Goic 99).

Neste trabalho, primeiramente proponho tratar da relação entre a literatura de Roberto Bolaño e o cinema (entendido aqui como um discurso artístico e cultural) a partir da presença deste em citações diretas, seja a filmes, profissões relacionadas à sua produção e distribuição ou a câmeras e projeções. E, em seguida, apresento uma segunda relação entre a escrita de Bolaño e o cinema, que considero ainda mais potente, presente na elaboração de seus recursos narrativos. Ainda que os elementos tratados aqui (imagem, tempo e montagem) não sejam uma exclusividade do cinema e nem mesmo tenham tido seus inícios no sistema das imagens em movimento, considero que encontraram nesta arte um campo privilegiado para sua elaboração, teorização e discussão. Esta abordagem ressalta o diálogo possível entre a escrita de Bolaño, através do tratamento dado à imagem, ao tempo (principalmente no uso de sua elasticidade e dos tempos mortos) e à fragmentação, e as mencionadas elaborações cinematográficas. Advogo, ainda, que se erige nesta literatura uma potente narração por imagens e por movimento (dada em seus choques), sendo este recurso, a meu ver, entendido como uma resposta política do uso do tempo e do imagético na modernidade.

Nos textos de Roberto Bolaño há uma série de referências ao cinema, de forma recorrente e diversificada. O sistema das imagens em movimento é uma presença constante em todos os textos e estão apresentados de maneiras bastante distintas em cada um. Nos livros Putas asesinas e Llamadas telefónicas, em absolutamente todos os contos, há pelo menos uma menção ao cinema ou aos filmes vistos pela televisão e no romance Amberes há referências diretas à câmera, à projeção, a telas de cinema, a cortes, planos, enquadramentos e a outros termos, recursos e técnicas cinematográficas. Não se pode esquecer o encontro decisivo entre Pierre Pain e Pleumeur-Bodou (Monsieur Pain), que acontece dentro de uma sala de cinema. O cinema figura em seus contos como uma marca de cotidianidade e presença constante da vida contemporânea, com as diversas menções aos personagens que estão vendo filmes de videolocadoras ou pela televisão, como em “Buba”, “Los últimos atardeceres en la tierra”, “Clara”, “Lalo Cura” ou de “Putas asesinas” –o conto–, que tem o programa de televisão como referência constante, apontando que “la televisión no miente, ésa es su única virtud (ésa y las viejas películas que dan de madrugada)” (Bolaño, Putas asesinas 125), entre outros. Ou ainda como um fator de aproximação entre os personagens, pela cinefilia e o costume de frequentar videoclubes, por exemplo, em “Dentista” ou “Carnet de baile”.

Outra forma muito recorrente da presença do cinema nos contos é através de personagens cujas profissões estão diretamente relacionadas a ele, seja na sua produção ou veiculação. Um exemplo é o conto de “Lalo Cura”, de Putas asesinas, em que quase todos os personagens, inclusive a mãe do narrador, eram atores ou diretores de filmes pornográficos com os quais conviveu durante a infância, assim como em “Joanna Silvestri”, do conto homônimo, de Llamadas Telefónicas, uma atriz de produções pornográficas que vai à cidade norte-americana de Los Angeles gravar um filme junto com os colegas de elenco e produção. Também, em “Carnet de baile”, um dos personagens mencionados repetidas vezes é Alejandro Jodorowski, diretor de cinema não só da ficção, mas também real, amigo de Bolaño, personagem-narrador, homônimo ao autor, que inclusive tentou aprender a dirigir filmes: “Dos años después, en 1970, conocí a Alejandro Jodorowski, que para mí encarnaba al artista de prestigio (...) le dije que quería que me enseñara a dirigir películas y desde entonces me convertí en asiduo visitante de su casa” (Bolaño, Putas asesinas 208).

Outra forma de tratar o cinema dentro de seus contos é considerando-o como referente para a construção de imaginários, capazes de explicar por associação as situações vividas pelos personagens. Frases como “y yo seguía contemplando como en el cine las ideas que pasaban por mi cabeza...” (Bolaño, Llamadas 168) ou ao descrever um personagem como “tan joven, un guapo, parece un actor de cine” (Bolaño, Llamadas 198), ou ainda Joanna Silvestri descrevendo seu pensamento “como si estuviera viendo una de esas películas de dibujos animados” (Bolaño, Llamadas 185). Essas frases, que são abundantes em suas narrativas, apontam essas imagens comparativas como referentes de um imaginário construído pelo cinema. Em alguns momentos, essas marcas de imaginários cinematográficos se apresentam de forma tão forte a seus personagens que por vezes estes não conseguem mais distinguir entre suas vidas e suas lembranças de filmes. Um exemplo é o conto “Días de 1978”, em que o narrador comenta um filme dizendo que “en su memoria esta película está marcada a fuego. Aún hoy la recuerda incluso en pequeños detalles” (Bolaño, Putas asesinas 75) e que mais adiante, após contar o filme aos demais presentes da festa, “se da cuenta que no le contó a U la película, sino a sí mismo” (Bolaño, Putas asesinas 78). Ou ainda, ao contrário, como no conto “Vagabundo en Francia y Bélgica”, em que o protagonista diz a si mesmo que “después piensa que tal vez ese recuerdo pertenezca efectivamente a una película y no a su vida real” (Bolaño, Putas asesinas 83). Estas duas passagens explicitam uma interferência direta entre as vidas de seus personagens e os filmes assistidos, ora com a vida em direção ao filme, como no primeiro exemplo, ora com o filme exercendo influência sobre a vida, como no segundo.

Uma das comparações mais diretas está explicitada em “El retorno”, no qual o personagem deve lidar com a morte, evento até então desconhecido, e descobre que esta está em tudo associada aos filmes que já assistiu:

Después todo siguió como lo explican en algunas películas (...) Como tantas personas yo también fui a ver Ghost, no sé si la recuerdan, un éxito de taquilla, aquella con Demi Moore y Whoopy Goldberg, esa donde a Patrick Swayze lo matan y el cuerpo queda tirado en una calle en Manhattan, tal vez en un callejón, en fin, una calle sucia, mientras el espíritu de Patrick Swayze se separa de su cuerpo, en un alarde de efectos especiales (sobre todo para la época), y contempla estupefacto su cadáver. Bueno, pues a mí (efectos especiales aparte) me pareció una estupidez. Una solución fácil, digna del cine americano, superficial y nada creíble.

Cuando me llegó mi turno fue exactamente eso lo que sucedió. Me quedé de piedra. En primer lugar, por haberme muerto, algo que siempre resulta inesperado, excepto, supongo, en el caso de algunos suicidas y, después por estar interpretando involuntariamente una de las peores escenas de Ghost (Bolaño, Putas asesinas 129-130).

Essa passagem evidencia a presença do cinema enquanto imaginário para lidar não só com o explícito e notório, mas inclusive com a morte. Ou seja, para lidar com aquilo que nos é desconhecido e que nesse conto se revela tal como as imagens construídas pelos filmes. Essa relação é novamente reafirmada no conto “Carnet de baile”, quando o narrador, ao se referir aos revolucionários chilenos, esquerdistas e jovens, que ainda conheciam pouco da vida, afirma que “hablaban de la muerte como quien cuenta una película” (Bolaño, Putas asesinas 211). Este último conto novamente reafirma o lugar do imaginário cinematográfico para construir as imagens e a percepção de suas próprias vivências e até mesmo daquilo que se desconhece.

O sistema das imagens em movimento, seja no cinema, na televisão ou na internet, tratou de rapidamente veicular e relacionar imagens aos nossos referentes de mundo. Não mais é possível pensar em Hitler sem associá-lo a sua imagem, sua fotografia, suas ilustrações ou ao icônico e sintético bigode. Ainda que o interlocutor nunca tenha estado em Paris, dificilmente não associará a cidade à imagem da torre Eiffel. E o mesmo para qualquer outro ícone da modernidade. A profusão de imagens e o crescimento de nosso repertório e imaginário sobre o mundo foram frutos dos meios de comunicação que usaram da imagem e, principalmente das imagens em movimento, para se firmar, rapidamente associando lugares, eventos, épocas e povos a referências imagéticas.

Da mesma maneira, um escritor que vive ou viveu em contato com esses meios também conta com este grande acervo e pode usá-lo para conseguir uma aproximação com o imaginário compartilhado de seu leitor e para se expressar dentro desse contexto e deste repertório, assumindo-o ou negando-o. Daí também a profusão de imagens e referências ao cinema ou à televisão dentro da obra de Roberto Bolaño. Um ponto a ser considerado na narrativa de Bolaño é a insistência da inserção de imagens na sua escrita. No romance Los detectives salvajes, há um recorrente uso destas. Parece-me importante lembrar que o poema de Cesárea Tinajero, o único deixado pela poetisa e que serve de força motora para a sua busca empreendida por Ulises e Belano, não utiliza de palavras além do título “Sión”, mas sim de uma sequência de três linhas. Os desenhos também são amplamente usados no jogo de adivinhação dos quatro integrantes da viagem ao deserto mexicano, a bordo do Impala. Importante ainda ressaltar o uso do último destes desenhos, quatro círculos ao redor de um retângulo preto, interpretado por Belano como quatro mexicanos velando um cadáver, possivelmente um prenúncio da morte de Cesárea Tinajero, que ocorrerá mais adiante na narração de García Madero. Em Monsieur Pain, há, ainda, a escolha de reprodução de um cartaz encontrado, com uma série de palavras escritas em letra cursiva. Muitas vezes, por outro lado, pode-se, também, perceber uma postura crítica do autor frente a essa profusão de imagens e imaginários construídos. É um olhar crítico de Bolaño que, longe de invalidar sua relação com as imagens, reafirma sua atenção voltada para a construção do imaginário pela via das produções imagéticas. Estas chegam à abundância e até mesmo ao excesso, expondo seus personagens a este sistema imagético. Em Una novelita lumpen, por exemplo, essa imoderação está presente na relação estabelecida pelos irmãos e a televisão. Nesta, usada como escape e ligação com o mundo, o casal de irmãos, na sua inércia, se dedica a ver os inúmeros programas de auditório (de fácil reconhecimento para o leitor, devido à proliferação destes nas redes televisivas de todo o mundo), em geral associados aos programas de baixa qualidade e pouco estímulo intelectual. Também figuram os programas pornográficos, assistidos pela dupla, que tomam o papel de educadores sexuais dos adolescentes e que, longe de provocar a excitação, se apresentam na sua esterilidade de emoções. No conto “Buba”, o personagem também lida com o excesso de televisão como uma maneira de gastar o tempo e a solidão, inundando sua rotina de imagens aleatórias e sem muito significado para sua vida.

Ainda no hall dos excessos de imagens, ressalto Carlos Wieder, com sua coleção de fotografias, capaz de deixar até mesmo os cúmplices da ditadura e torturadores constrangidos com o visto. É interessante notar que mesmo os torturadores que viram situações semelhantes pessoalmente se sentem incomodados diante do horror registrado em imagens fotográficas. O excesso de fotos, que tomavam toda a parede do pequeno quarto de Wieder, explicita e satura o horror contido nos atos bárbaros das torturas e assassinatos. Este descomedimento, intragável até mesmo pelo regime violento, é responsável pela expulsão do outrora aplaudido poeta de suas funções repressivas no governo de Pinochet. Após o ocorrido, novamente Wieder se dedicará ao excesso das imagens através da produção de filmes pornográficos. O pornográfico é o desnudamento do ato sexual, privando-o dos adereços de um romantismo e exibindo-o em sua crueza. Wieder, mais uma vez, opta pelas imagens do explícito para seu fazer dito artístico, primeiramente da manifestação da violência e posteriormente para a visível e não estetizada sexualidade. Mais uma vez, as imagens são demasiadas para nosso narrador: “não aguento assistir tantos filmes pornográficos”, que longe de causar excitação em nosso personagem, são estafantes. O exagero destas imagens, na sua esterilização do estético e imoderação do explícito, assusta, afasta os personagens, satura e perde sua função. Os filmes pornográficos não excitam e fatigam o personagem detetive de Estrella distante, assim como a overdose de programas televisivos e filmes adultos em Una novelita lumpen são indicativos e motivos de prostração dos irmãos, que apáticos, gastam suas abundantes horas ociosas frente ao aparelho.

Todas essas declaradas referências às produções e veiculações cinematográficas –constantes em seus contos e romances, e construtoras de imaginários, que comparam, explicam e relacionam elementos da sua narração– permitem supor na literatura de Bolaño uma grande confluência do cinema com sua escrita. No entanto, apesar das numerosas referências a filmes e diretores de cinema que podem ser associadas ao sistema das imagens em movimento, acredito que, como anteriormente afirmado, uma das aproximações mais potentes entre a narrativa de Bolaño e o cinema se dá através do uso de estratégias narrativas. A seguir, aponto algumas questões estéticas que também podem servir para analisar essa aproximação entre as duas linguagens, literária e cinematográfica, na composição da escrita de Roberto Bolaño, que relacionam as duas artes enquanto conformadoras de um contexto de modernidade. O trabalho com o olhar, a elasticidade do tempo e a fragmentariedade do discurso me serão muito caros nesse trabalho para analisar a escrita de Roberto Bolaño na sua relação com seu contexto social, cultural e político. Escolhi, portanto, esses três elementos tão importantes para a construção da arte moderna e que foram explicitamente tratados e elaborados no cinema para analisar a obra de Bolaño: a imagem, o tempo e o fragmento.

Como um primeiro ponto de análise, portanto, destaco como a relação com a palavra e a imagem se faz na obra de Bolaño, considerando como a escrita pode ser imagética e quais os recursos utilizados para tal. O cinema é um sistema sígnico no qual sua matéria não é mais a do contar e, sim, a do mostrar, sugerir. Sua função não é descrever, mas imprimir sentidos, iconicamente. Epstein assim define o fazer do cinema: “Não olhamos a vida, nós a penetramos. Esta penetração nos permite todas as intimidades. Um rosto sob a lupa, rodopia, exibe uma geografia febril (...) é o milagre da presença real, a vida manifesta, aberta como uma bela granada; liberta da sua capa, assimilável, bárbara” (Epstein 270).

A literatura elabora com o cinema a narração por imagens e por movimentos. Buscando no verbal o que mais se assemelhe ao icônico para mostrar algo, não mais para descrevê-lo, e propondo narrativas que possam ser construídas sobre os intervalos; isto é, não mais pela descrição explícita de algo, mas pela sugestão dada sobre o movimento entre as imagens, sobre a correlação visual das mesmas geradas por seus signos verbais, umas em relação às outras, unindo visibilidade e significação, sobre a transição de um impulso ao seguinte, já que, analogamente, “o principal, o essencial é a cine-sensação do mundo” (Vertov 264).

Como um elemento do olhar, que me parece importante, analiso a direção proposta pela narração de Bolaño. Observo que, “em geral, uma das características do cinema é a de dirigir a atenção do espectador para os diferentes elementos que se sucedem no desenvolvimento de uma ação” (Balazs 84), ou seja, definir, em cada momento, quais são os elementos importantes para o entendimento da ação ou, ainda, centrar a atenção do público ora em um personagem, ora em outro –mesmo que eles apareçam na mesma cena– bem como o uso de foco, de zoom ou de closes. Esse direcionamento do olhar do leitor/espectador para o centro de ação que deseja o autor é um recurso cinematográfico que, por vezes, se faz presente também na literatura e definir o que ganha foco em cada momento é fundamental para se alcançar algumas significações desejadas ao longo da narrativa. Em alguns contos, Bolaño joga com a direção da atenção, definindo e diluindo o que seria um primeiro plano (espaço de maior atenção ou atenção central) e o segundo plano (espaço de atenção secundária, com menos importância narrativa). No trecho abaixo, de “Últimos atardeceres en la tierra”, conto do livro Putas asesinas, pode-se perceber com clareza esse jogo de direção do olhar do espectador, que ora é levado a “ver” os detalhes e posteriormente a “ver” o que ficou em extraquadro, fora do foco descritivo do momento:

Entonces B desvía la mirada y vuelve a su libro, que permanece abierto sobre la mesa, es un libro de poesía. Una antología de surrealistas franceses al español por Aldo Pellegrini, surrealista argentino. (…) Así que B desvía la mirada, abre su libro al azar y encuentra a Gui Rosey, la foto de Gui Rosey, sus poemas, y cuando vuelve a levantar la mirada la cabeza de su padre ya no está (Bolaño, Putas asesinas 39).

Nesse trecho, o narrador direciona o olhar do leitor, para que este perceba aos poucos os detalhes dos objetos mostrados em close. Primeiro, se percebe um livro aberto, logo que é um livro de poesia. Em seguida, revelam-se detalhes do teor do livro e, depois, há um corte para a mirada de B e sua ação de abrir o livro, para em seguida voltar ao livro e à foto, seguida pelos poemas de Gui Rosey. Seguidamente, há outro corte para mostrar a ação de levantar a cabeça e logo a cena ao seu redor, do que ainda não havia sido mostrado e ficou em extraquadro. Ou seja, a cena não é descrita em sua inteireza, mas somente nos elementos direcionados pelo narrador e à medida que lhe interessa revelar o que acontece com o recurso de centrar-se nos detalhes, permitindo, por exemplo, que somente se perceba a ausência do pai no último instante.

Ou ainda no seguinte trecho do mesmo conto:

Tiene pelo largo, como casi todas, y lleva zapatos con tacones muy altos. Cuando cruza el local (se dirige al lavabo) B estudia con detenimiento sus zapatos: son blancos y están sucios de barro en los lados. Su padre también levanta la mirada y la estudia durante un momento. B mira a la puta que abre la puerta del baño, y luego mira a su padre. Entonces cierra los ojos y cuando vuelve a abrir la puta ya no está y su padre ha vuelto a concentrarse en el juego (Bolaño, Putas asesinas 60).

Aqui, há uma descrição da personagem feminina estritamente física –objetiva e não subjetiva– fazendo referência ao olhar de B. Logo, uma visão do detalhe dos seus sapatos, que à maneira de um zoom, aproxima nosso olhar aos pormenores do objeto. Em seguida, há um corte e a visão mostrada já é do olhar do pai de B, para logo haver outro corte para o olhar novamente de B, com as descrições de ações da personagem –também de forma objetiva e não subjetiva, no campo ainda do olhar. Em seguida, B fecha os olhos e, a partir da sua subjetiva3, há outro corte para quando os abre e a cena já está modificada. Estes trechos exemplificam a direção do olhar do leitor para indicar os detalhes da cena e a subjetividade da visão dos personagens, mas que é capaz de zooms, planos detalhe e cortes que indicam aquilo que o narrador quer mostrar e até o que deixou de mostrar, como o extraquadro que só se explicita na última frase. Faz-se notar, nesses trechos, o uso de recursos tipicamente cinematográficos, apropriados em uma narrativa verbal, tais como zoom, closes, fade-out (olhos fechando) e cortes para uma cena modificada.

É importante ressaltar que as descrições dos personagens e de suas ações se dão mais por uma via objetiva que subjetiva. Ou seja, descreve-se o personagem por suas características e ações “visíveis” ao olhar. Não são descrições de sua personalidade, mas sim de suas roupas, sua altura, cabelos, etc. e de suas feições, reações, como pode ser verificado no trecho a seguir do conto “Vagabundo en Francia y Bélgica”:

[M] tiene alrededor de veinticinco años y es alta y delgada. Sus ojos son verdes, que era el mismo color de los ojos de su padre (…) Al llegar al museo, M, tras pagar ella las entradas se queda esperándolo en la cafetería, leyendo el periódico delante de un capuchino, las piernas cruzadas en un gesto elegante y al mismo tiempo solitario (Bolaño, Putas asesinas 86-89).

Ou ainda, no mesmo conto, ao se referir a uma garota que mora na casa que buscavam: “B llama a la puerta. En el interior suena una especie de badajo. Al cabo de un rato aparece una muchacha de unos quince años, vestida con bluejeans y con el pelo mojado” (Bolaño, Putas asesinas 92). Nesses dois trechos, as descrições utilizadas são marcadamente físicas, portanto, da ordem do sensível ao olhar, podendo ou não ter implicações de subjetividade.

Essa escolha descritiva mais “visível” é ainda reafirmada nos titubeios do narrador para explicar o significado subjetivo dessa descrição. Um exemplo é o conto “Putas asesinas”, em que as descrições do personagem masculino, sem direito a voz por estar sequestrado, se dá sempre por suas feições e reações físicas ao que lhe é dito pela personagem feminina do conto. O narrador recorrentemente o descreve fisicamente e apresenta duas ou mais possibilidades de significados subjetivos para essa descrição:

(el tipo agacha la cabeza. La alza. Sus ojos intentan componer una sonrisa. Sus músculos faciales se contraen en uno o varios espasmos que pueden significar muchas cosas: somos el uno para el otro, piensa en el futuro, la vida es maravillosa, no cometas una tontería, soy inocente, arriba España.) (Bolaño, Putas asesinas 117).

Essa forma de narrar privilegia mais os gestos e ações “visíveis” para mostrar possibilidades de exteriorização de subjetividades, levando novamente a narração para a percepção visual, criadora de imagens. É uma forma muito semelhante aos roteiros de filmes, inclusive pela presença dos parênteses, que em geral indicam as didascálias e sugerem atuação e subtextos para seus atores, em que nem sempre definem com exatidão a sensação que devem interpretar.

Advogo que, após a invenção do cinema e da elaboração das imagens na fotografia, imprensa e demais meios, não mais é possível pensar imagem e tempo separadamente. Toda imagem está inserida em um tempo, de produção e de leitura, e nele se inscreve não mais estaticamente, mas sim em diálogo com esse contexto temporal e com as imagens que lhes são predecessoras e sucessoras. Por outro lado, não mais, na sociedade do registro e representação, há um tempo sem sua associação imagética, sem sua imagem em nosso imaginário, como assinalado anteriormente. Dessa forma, a separação entre imagem e tempo é meramente didática, sendo inviável na prática. Portanto, se faz necessário tratar também sobre os jogos de perspectiva temporal e o trabalho com o tempo, bem como analisar os tempos de referência e de experiência presentes na obra ficcional de Bolaño. Umberto Eco, em Cine y literatura: la estructura de la trama, afirma que:

El tratamiento de la temporalidad que el film introduce no carece, ciertamente, de efectos en la cultura contemporánea: ha propuesto de una forma tan violenta un nuevo modo de entender la sucesión y la contemporaneidad de los acontecimientos que incluso las demás artes han reaccionado ante esta provocación.

Um mérito do cinema é elaborar e multiplicar os jogos de perspectiva temporal, passando do tempo absoluto ao condicional da cena. Este recurso propõe uma lógica própria de entendimento do tempo, proporcionando uma relativização da duração dos instantes, agora retomados não a partir da objetividade do relógio, mas das necessidades subjetivas da narrativa e dos personagens. Através da proposição de “câmeras lentas” ou movimentos “acelerados”, da distensão da duração da ação, ou da ruptura com o tempo da produção, privilegiando a descrição espacial e relacional entre personagem e narrativa, o cinema desconstrói e reconstrói as relações temporais da vida cotidiana e as põe a serviço da significação estética. Assim, todas as estimativas da dimensão tempo só têm um valor particular; ou seja, só fazem sentido para criar a significação de um momento específico de uma narrativa. É um tempo próprio do filme ou do texto, que servirá para criar as devidas tensões e distensões planejadas pelo autor.

Há, na literatura de Bolaño, estratégias de trazer o tempo à superfície da sensibilidade, tornando-o um elemento em foco para a construção de suas narrativas. Relativizar sua passagem, não mais de acordo com o relógio, mas sim com a percepção do sujeito, fez-se necessário nos jogos de montagem e perspectiva temporal, de modo a lidar com as novas necessidades de apreensão do mundo e das narrativas. Seja no seu uso aparentemente gratuito, como nos tempos mortos, na sua fragmentação ou ainda na sua distensão, esses recursos elaboram a temporalidade não mais mecanizada e formatada no senso comum da utilidade, linearidade e continuidade do tempo moderno, mas resgata-o à subjetivação e à sensibilidade da sua percepção, como recurso estético da sua escrita sendo, portanto, também político. Desnaturalizar o tempo e questionar suas relações contribuem para o questionamento também da própria historiografia pessoal e coletiva, ao presentificar e reiterar dados e momentos constitutivos do sujeito-narrador e de sua geração. As imagens na narrativa ficcional da obra de Roberto Bolaño se constroem na intranquilidade do choque, sendo geralmente multifacetadas, fragmentadas e entrecortadas por outras referências de tempo ou de perspectivas. Não são imagens unívocas ou simplificadas, mas sim ambíguas, privilegiando a multiplicidade, o que me faz aproximá-las do que Didi-Huberman, apoiado em Benjamin, chama de imagens dialéticas. O texto de Bolaño cria imagens que, em sua dialética relação entre o passado e o presente, a presença e a ausência, nos ajuda a reconstruir a imagem desse adulto latino-americano, nascido na década dos cinquenta e que contava os 20 anos, quando morreu Salvador Allende, pois “a ausência dá conteúdo ao objeto ao mesmo tempo que constitui o próprio sujeito.” (Didi-Huberman 96).

Jacques Rancière aponta a importância do fazer estético em conjunto com o fazer político, afirmando que atualmente há um modelo de compromisso que, embora esgotado, precisa ser renovado e que concebe o trabalho artístico como a investigação de um aspecto da realidade que esteja enquadrado ou formatado pelo senso comum e que deve ser devolvido à realidade sensível (Formas de vida). Trabalhar o tempo, devolvendo-lhe a sensibilidade e a percepção do mesmo, pode ser lido como uma proposta política da escrita de Roberto Bolaño, por discutir um elemento da modernidade naturalizado em sua formatação mecanizada, tornando-o perceptível e estetizado. Separei, para este estudo, algumas possibilidades de recursos em sua escrita de notabilidade do tempo, confluentes com as técnicas cinematográficas para a criação de narrativas, sendo eles o tempo morto, os saltos temporais e a distensão do tempo.

Um recurso muito presente no cinema, largamente utilizado –na nouvelle vague, por exemplo, ainda que não inédito, foi um recurso central– o “tempo morto”, seria a narrativa que se propõe a traduzir um certo ritmo de vida cotidiana, onde o tempo é contínuo, como se cada corte indicasse extensão e não transposição, é dizer, de uma cronologia estendida, sem os cortes de atalho da ação. Apresenta-se o ato em sua inteireza, sem deixar para a inferência do espectador o desenrolar de uma ação cotidiana, como é de praxe em montagens clássicas que se utilizam de cortes e elipses. Se o personagem caminha de um endereço a outro, é acompanhado em todo o percurso, sem um corte de uma cena que indique que saiu de seu lugar de origem, para outra em que chega a seu destino, mas sim acompanhado em cada um dos seus passos entre um local e outro. Trata-se de um tempo onde aparentemente nada de importante para a narrativa acontece, em que as ações não se relacionam de forma causal com outros acontecimentos que virão, mas que muitas vezes é utilizado como elemento de linguagem para a descrição de um espaço-tempo específico. Esse tipo de recurso, em geral, utiliza-se de uma relação dos personagens com o ambiente e com um tempo a ser habitado pelos mesmos. Mais do que criar um enredo causal e repleto de cenas monumentais ou eventos extraordinários, conta-se da relação dos personagens com seu entorno e sua vivência em situações muitas vezes ambíguas, cheias de hesitação, repetição, vazios e marcas de acaso, de forma mais orgânica e cotidiana. É importante lembrar que, muitas vezes, “um espaço vazio vale antes de mais nada pela ausência de conteúdo possível” (Deleuze 27) e que, antes que marcar um espaço do contar, pode apresentar-se como a marca do que não se pode dizer.

Em muitas narrativas de Bolaño, não são as cenas extraordinárias que formam a narrativa, mas sim as cenas de tempos mortos, com mais relato do que ação ou com acontecimentos que a princípio não apresentam relação de causalidade com outras vindouras ou não levarão a consequências narrativas. Marcam um vazio narrativo, porém orgânico e cotidiano de inserção no tempo-espaço habitado por seus personagens. Esse recurso pode trazer à baila a percepção do tempo, agora estendido e com aparente gratuidade, à diferença de um tempo que não se nota para ceder lugar a uma sucessão de ações significativas. O que se percebe nesses relatos de Bolaño não é mais um encadeamento das ações, mas sim o tempo e sua duração.

Um exemplo para tal, são as férias de B e seu pai no conto “Últimos atardeceres en la tierra”. Uma continuidade de exposições do período de descanso entre pai e filho, sem ações que gerem causalidades com atos futuros, mas que põe em evidência muito mais a forma de percepção de B de todo o tempo lento e estendido das férias. Toda a longa sequência em que B aluga uma prancha e a utiliza para um passeio no mar não apresenta nenhum efeito causal na narrativa, não mais é mencionada ou tem retomado algum de seus elementos para explicar ou motivar atos futuros. São apresentados detalhes do passeio de B quando sai do hotel até o momento de seu retorno, que, narrativamente, poderia ser resumido em poucas linhas, mas que para efeitos de percepção do tempo e da relação do personagem com este e com o ambiente que o cerca são necessários. Atos como o de perguntar o preço do aluguel da prancha ou da percepção dos peixes, por exemplo, poderiam ser apenas mencionados, mas são descritos em seus detalhes, com foco para a extensão do tempo e da percepção de B, assim como do percurso entre a praia e a ilha.

O mesmo ocorre, por exemplo, em “Joanna Silvestri”. Um texto quase não pontuado, das memórias de uma viagem de trabalho a Los Angeles da atriz, sua personagem principal. Mais uma vez, o leitor testemunha cada detalhe entre a chegada da personagem à casa de Jack até seu encontro e abraço com o mesmo. Cada impressão sobre a casa, cada batida na porta e todas as etapas até que esta se abra e os dois personagens se abracem. Um corte em elipse que mostrasse a sua chegada e, posteriormente, a porta se abrindo e os personagens se reconhecendo e se cumprimentando seriam suficientes para o entendimento da ação narrativa. No entanto, todo esse percurso, ainda que sem efeito de causalidade narrativa, diz de uma percepção do tempo e do ambiente com que esta personagem tem que lidar. O trecho trata de uma vivência em um espaço-tempo de seu personagem e, mais uma vez, resgata o tempo que poderia ser mecanizado e comum e o traz à esfera do sensível, provocando sua percepção e subjetivação.

Essa proposta de utilização dos tempos mortos pode ser entendida como uma resposta política ao uso do tempo na modernidade, principalmente ao tempo impessoal, regido pela máquina e de intensa cobrança pela produtividade. Em uma sociedade que condena o ócio e tenta evitar o tédio com inúmeros estímulos, propor uma percepção e um lugar para o tempo não explicitamente produtivo traz de novo ao terreno da percepção o tempo modernizado e sua utilização política, econômica e social4. Em uma modernidade econômica que privilegiou a produção e a geração de capital e tratou a humanidade trabalhadora como uma máquina de gerar riquezas, associada a uma sociedade que privilegiava a rapidez, a proposição estética de voltar a perceber o tempo e tratá-lo em contraste com o tempo não narrativo e não útil, é também uma proposta política de confronto com essa prática de soterramento do humano pela pressa do capitalismo.

Outra forma de tornar o tempo sensível é provocar saltos temporais nas narrações, trazendo à superfície uma necessidade de lidar com diversas temporalidades em rápidas transposições de cronologia para contar um mesmo sucesso. Um exemplo desse jogo de tempos, com retornos, ciclos e quebras, fragmentando uma pretensa linearidade do tempo, pode ser observado no romance Estrella distante, em que, assim como as falas dos personagens, os tempos se mesclam, sem marcas claras e fixas de determinação cronológica.

En la carta donde me explicó estas cosas (carta escrita muchos años después) Bibiano decía que se había sentido como Mia Farrow en El bebé de Rosemary, cuando va por primera vez, con John Cassavettes a la casa de sus vecinos (…) En la casa de Ruiz-Tagle lo que le faltaba era algo innombrable (o que Bibiano, años después y ya al tanto de la historia o de buena parte de la historia consideró innombrable, pero presente, tangible), como si el anfitrión hubiera amputado trozos de su vivienda (Bolaño, Estrella distante 17).

Este trecho permite ao leitor perceber pelo menos três temporalidades distintas: a do ato contado, a visita à casa de Ruiz-Tagle; o momento de escrita da carta, um pouco posterior; e o momento do contar, que já dispõe de mais informações sobre o que poderia ser o “inominável” da casa, com uma marcação incerta de “anos depois” do episódio da visita. Essa narração deixa entrever ainda, para o leitor, informações que lhe serão futuras na narrativa, pois já indicam avisos do que será a história desses personagens. Através desse jogo, de tempos e de informações passadas mescladas a dados que narrativamente só serão dispostos no futuro, pode-se propor um exercício de lidar com o tempo de forma menos linear e naturalizada, mas sim a partir de uma relação constante entre passados e futuros, em que o entendimento do que irá ocorrer ajuda a compreender o passado. Informações do porvir que servirão de chave para a compreensão do que já foi (“años después y ya al tanto de la historia”). A fragmentação questiona qualquer jogo de continuidade sem distanciamento. A partir do fragmento, o leitor é convidado a participar do jogo ativo de montagem de sentidos nos diversos tempos. E, nesse caso, Bolaño pode falar de si falando do outro, jogar com a própria experiência do tempo, para falar da nossa experiência enquanto leitores, ou de sua geração. Tempos que se propõem explicitamente relacionados e, portanto, trazidos à necessidade de sua percepção.

Outro exemplo de fragmentariedade da narrativa que se constitui por saltos temporais, é a montagem proposta em Los detectives salvajes, que utiliza de relatos em diferentes tempos alguns dos mesmos personagens que, em cada relato, se encontram em uma época de sua vida diferente. A partir desse mosaico de distintas temporalidades – diferentes entre os diversos personagens, mas também variadas entre os relatos de um mesmo depoente – se constrói uma narrativa sobre os protagonistas Belano e Ulises. A narrativa composta por tempos diferentes, sejam estes da narração direta ou da memorialística, propõe que se combine dispersão e reunião de forma simultânea. Estas duas ações, de lidar com o tempo em separado e com o tempo em relação com outros contextos –capazes inclusive de modificar uns aos outros– permite a análise de um período cultural como de um mosaico, uma montagem temporal e espacial de fragmentos, situados em relações provisórias que, no entanto, “reafirmam o motor mesmo do moderno: a experiência do descontínuo” (Antelo 28). Dessa forma, a fragmentação do tempo pode alimentar o contínuo, por estabelecer as relações entre as partes, permitindo pensar o singular de um momento, de um contexto, não somente como único e localizado, mas como elemento também disseminado e recorrente. Significa pensar o tempo em suas relações de proximidade e diferença, rompendo com a ideia de naturalização e continuidade e estabelecendo leituras de descontínuos fragmentos relacionados. Patricia Espinosa ressalta que a escrita de Bolaño “violenta la unicidad” e que “el fragmento que pervierte a la obra, que la desecha como totalidad, pero que también la desea” (22) é um recurso aplicado a diversas categorias em suas narrativas, e, ao meu ver, inclusive em relação ao tempo.

Em uma perspectiva cinematográfica, a percepção do movimento se dá a partir da junção de fragmentos estáticos, de forma a criar relações entre eles e, a partir de semelhanças e diferenças, criar a sensação da cinese. É importante também frisar que a imagem cinematográfica gerou tantos debates sobre o tempo porque tem de lidar com ele diretamente, pois está em movimento e não somente representa um movimento, colocando as imagens em uma linha de tempo, e exigindo que seu espectador relacione as já vistas com as que virão para gerar a significação. É a imagem no tempo, propondo-se a explorar diretamente este, e não só o movimento, pondo à mostra, segundo Jacques Aumont:

A ideia essencial e inovadora enfatizada por Deleuze: o dispositivo cinematográfico não implica somente um tempo que escoa, uma cronologia na qual deslizamos como em perpétuo presente, mas também um tempo complexo, estratificado, no qual nos movemos em vários planos ao mesmo tempo, presente, passado(s), futuro(s) –não apenas porque neles fazemos funcionar nossa memória e nossas expectativas, mas também porque, quando insiste na duração dos acontecimentos, o cinema consegue nos fazer perceber o tempo (175).

Ao colocar as imagens em relação umas com as outras, em uma linha temporal, “a imagem-movimento dá lugar a um conjunto sensório-motor, que funda a narração na imagem” (Deleuze 45). Perceber o tempo é fundamental para o entendimento do cinema. Deleuze ainda afirma que “compete ao cinema apreender o passado e o futuro que coexistem com a imagem presente” (52) e lembra que “o cinema é a única experiência em que o tempo me é dado como uma percepção” (Deleuze 51). Portanto, aprender a lidar com as diversas camadas temporais, fragmentadas e que necessitam de uma montagem, devido à sua junção por saltos e não pela linearidade, é uma tarefa para o leitor e o espectador que lidam com uma temporalidade reinventada no cinema e na literatura pela modernidade, que exige destes que aprendam a reconfigurar as experiências isoladas de forma a criar sentidos, conforme explicitado neste estudo.

Como terceiro recurso, a pausa ou a supressão do tempo ou seu desaceleramento podem ser também recursos para torná-lo perceptível. Exaltar o fotograma, a imagem do instante e excluir o tempo da linha narrativa, pode ser visto como uma forma de fazê-lo, outra vez, como um elemento a ser percebido fora de sua pretensa naturalidade. Trechos como “nadie entraba en el bar, nadie se movía, el tiempo parecía detenido.” (Bolaño, Estrella distante 151) subjetivam a passagem do tempo, de forma a que se possa percebê-lo não por sua naturalidade, mas por sua relação com o personagem e a narração. O mesmo pode ser observado em “Se sacó la gabardina, la sujetó de los hombros y luego la abofeteó. El vestido de ella cayó en cámara lenta sobre su abrigo de piel.” (Bolaño, Amberes 73). Este trecho também faz referência direta a roteiros de filmes, inclusive com a menção a câmeras, enquadramentos, luz, palavras impressas na tela, como em “El rostro de ella se hunde entre la almohada y el cuello de su amante. La cámara los toma en primer plano” (Bolaño, Amberes 47). Ou ainda: “Se suceden imágenes vacías: la represa y el bosque, la cabaña con la chimenea encendida, el amante con la bata roja, la muchacha que se vuelve y te sonríe” (Bolaño, Amberes 47), em uma clara interrupção da narrativa. Ou ainda mais explícito em: “Levanta la vista, mira hacia la cámara y sonríe” (Bolaño, Amberes 46). Nos trechos anteriormente mencionados, pode-se perceber uma relação direta entre a escritura e o cinema, principalmente no que tange ao tempo deste, com pausas ou câmeras lentas e de interação entre a cena, seus personagens e a câmera, o olho observador. Nesses exemplos, a partir da relação câmera-personagem, percebe-se uma suspensão do tempo do narrado para uma aproximação direta com a imagem a ser vista. Quando o narrador afirma que a personagem “levanta la vista, mira hacia la cámara y sonríe”, ela é retirada, por segundos, de seu contexto e é suspensa da temporalidade da narrativa, em uma relação direta com “aquele que vê” e está detrás da câmera ou da tela. Ao explicitar a presença da câmera, através de seu olhar direcionado a ela, não há mais tempo ou narratividade, há somente suspensão e proximidade com o personagem. Essa explicitação provoca a ruptura de uma pretensa linearidade e continuidade narrativa, levando a percepção não mais para o enredo, mas sim para o tempo e sua supressão.

Concluindo, a relativização do tempo na obra ficcional de Roberto Bolaño sinaliza as relações em rede das diversas camadas temporais utilizadas pelo autor, através de recursos, como o uso do biográfico, do histórico e do ficcional mesclados de forma não hierárquica, das memórias e de seus titubeios, e de técnicas narrativas comuns ao cinema. Esta proposta de trazer à tona novamente elementos tão caros à modernidade como o tempo, as imagens e as relações que podem ser estabelecidas a partir dos diferentes tratamentos dados à fragmentação da narração é uma proposição estética, mas também política, ao apontar novas formas de percepção dos mesmos.

O presente, em sua escrita, é visto a partir das suas temporalidades emaranhadas e concatenadas, gerando a necessidade da montagem de seus textos, de modo a formar as imagens de seus personagens e contextos. Na sua narrativa, os tempos se tornam visíveis e suas costuras se apresentam diante dos olhos de seu leitor. Essa montagem cria o movimento suscitado a partir das diversas reorganizações e colagens temporais, de forma a potencializar as imagens geradas em um mosaico de fragmentos narrativos. O imbricamento entre forma e conteúdo, que fazem relacionar os diferentes fragmentos visuais e temporais de sua narrativa, é considerado nesse estudo como um importante elemento construtor da obra de Roberto Bolaño. Portanto, proponho a leitura de sua obra a partir de uma análise inter-relacionada entre as temporalidades e as imagens suscitadas destas. A escrita fragmentada e interligada sugere um movimento de montagem de diferentes tempos e de diferentes imagens, assim como deixa entrever os fotogramas literários, ou seja, as imagens recorrentes que, como estandartes, reaparecem e se fixam como uma constante na sua literatura. Os fragmentos de tempos e de imagens podem juntar-se de modo a formar mosaicos ícono-temporais em seus textos que deixam em sua imagem final os rastros de um outro tempo e de um outro relato, de uma outra imagem.

Os caminhos de modernização são questionados pela escrita de Bolaño. Assume-se enquanto arte decorrente da modernidade, mas a revisita deixando entrever as feridas de seus esgotamentos e limites. Para entender esse momento e torná-lo analisável, tomei o cinema como uma plataforma de discussão, como uma possibilidade de deixar visíveis e palpáveis questionamentos próprios nas manifestações formais de uma época. O cinema ajudou a apresentar e a construir a modernidade, dando-lhe uma forma e uma narrativa e mantendo íntimo diálogo com outras artes e demais produções, como foi apontado anteriormente. Aproveitando da proximidade entre Bolaño e o cinema, uso este como um anteparo para entender algumas questões dos projetos modernos em sua literatura, tanto nas temáticas (de inter-referências) quanto nas escolhas formais (na sua relação com o tempo, o fragmento e o visual). Para isso, o cinema, além de um diálogo interartístico entre um autor que mostra constante e recorrente interesse pelas imagens em movimento, me serviu para trazer à tona questionamentos próprios de uma modernidade e para desnaturalizar as compreensões causadas pela mesma. A literatura de Roberto Bolaño traz à superfície do sensível (Rancière, A partilha) algumas questões como o tempo, o uso do fragmento e as imagens referenciais, as ausências, a história e a memória. E dá a ver e a presenciar, sob outras e várias perspectivas, o que não pode ser esquecido e o que precisa ainda ser questionado. Penso que, quando os sujeitos de sua literatura se apoderam novamente do tempo –e o relacionam com seu contexto e com outras temporalidades, montando e criando novas leituras– alcançam uma potência para entender a própria historiografia e também para questionar o seu uso mecanizado que foi imposto pelo ritmo da produção fria do mercado e da indústria. Bolaño reabre as discussões do século XX, e deixa expostas as relações inquietas entre nossos passados e nossos presentes.

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Recepción: 27.04.2015 Aceptación: 09.06.2015

1 Parece-me importante destacar que García Márquez chegou inclusive a ser cofundador da Escola de Cinema de Cuba (Escuela Internacional de Cine y TV), uma das mais reconhecidas mundialmente, para a qual, por muito tempo, ofereceu cursos de roteiro.

2 Julio Cortázar também auxiliava na elaboração de roteiros cinematográficos baseados em obras suas.

3 Subjetiva é um termo técnico do cinema, que indica a tomada de câmera que pretende ser a perspectiva do olhar do personagem, comparando a câmera ao olho no exercício do olhar de um sujeito. Este apontamento não significa que estes recursos são uma exclusividade cinematográfica, mas sim que podem indicar aproximações entre as formas de narrar da literatura de Roberto Bolaño e o cinema.

4 Sobre a utilização do tempo na revolução industrial conferir: Thompson; Lafargue.